"O abuso sexual está em todos os cantos, onde a gente menos imagina".
Todos os anos, cerca de 500 mil mulheres são estupradas no Brasil. O número é uma estimativa a partir das denúncias que chegam aos órgão oficiais e foram computadas pelo Ministério da Saúde. Desta forma, é possível verificar que, por dia, pelo menos 1.369 mulheres são vítimas de violência sexual no país. São 57 mulheres sendo agredidas, machucadas e traumatizadas por hora, a cada hora, todos os dias.
Só que, dentro desta conta, há um detalhe: 70% destas vítimas têm menos de 18 anos.
São meninas.
A estimativa muda para computar que cerca de 350 mil meninas são estupradas no Brasil todos os anos. São 958 crianças e adolescentes sofrendo abuso sexual por dia. Cerca de 40 vítimas por hora. E este número é apenas uma estimativa: a tendência é que ele seja ainda maior.
Para a escritora e professora Andreia Evaristo, curitibana radicada em Joinville, estes números têm rostos. Em sua carreira como educadora, não é raro que relatos de abuso sexual cheguem em meio a lágrimas e ao sentimento de culpa que costuma fazer parte da trajetória de toda vítima. São, em sua maioria, adolescentes que não foram vítimas de psicopatas escondidos em ruas escuras, mas que tiveram a confiança traída por parentes, amigos e namorados.
Pela Editora Areia, Andréia publicou dois livros que tem a violência sexual como pano de fundo: o romance "Em Pele de Cordeiro" (Editora Areia, 2018, 170p) e o infantil "Borboleta no Coração" (Editora Areia, 2017, 48p). Neste dia 18 de maio, data que desde o ano 2000 é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil, conversamos com ela para discutir o tema e analisar as obras.
Editora Areia - Como professora, você tem contato com crianças e, principalmente, adolescentes. Foi assim que o assunto do abuso sexual entrou na sua vida e despertou sua atenção? Como você explicaria a forma com que este assunto faz parte da sua vida, e como o conhecimento sobre ele evoluiu nos últimos anos?
Andréia Evaristo - O assunto do abuso sexual entrou na minha vida muito antes de eu me tornar professora. Eu me lembro da primeira vez em que ouvi falar sobre abuso contra crianças do meu bairro. Eu devia ter sete anos de idade. Havia alguém que tinha abusado de duas crianças, num local que ficava no caminho da minha escola. Eu me lembro do medo que fiquei, porque passava por ali todos os dias, com meu irmão do meio. Mas, apesar do medo, tudo era muito distante, era uma notícia na TV e uma conversa de vizinhos adultos.
Mais tarde, quando eu tinha 11 anos, muito se falava sobre um Opala preto que passava pelas ruas, sequestrava meninas e as estuprava. Tudo parecia lenda urbana, até o dia em que uma menina da minha escola foi surpreendida pelo tal carro e abusada. Foi a primeira vez que uma vítima de abuso tinha nome e rosto para mim.
Quando comecei a trabalhar com adolescentes foi quando as histórias começaram a ganhar mais corpo, mais nomes, mais rostos. O abuso sexual está em todos os cantos, onde a gente menos imagina. Como costumo ter uma relação muito próxima com as pessoas com quem convivo, aos poucos as histórias começaram a cair em meu colo, regadas a lágrimas, a suspiros e a culpa. Sim, culpa. As vítimas sempre se sentem culpadas, de um jeito ou de outro.
Eu comecei a escrever pequenas crônicas sobre o tema. Quanto mais as pessoas liam o que eu escrevia, mais relatos surgiam. Já não eram apenas adolescentes querendo desabafar: eram mulheres adultas, algumas com idade para serem minha mãe, me contando suas mais escondidas histórias.
Areia - Como esse assunto faz parte do dia a dia de uma escola? Há busca por ajuda? É possível perceber e desconfiar que há algo acontecendo a partir do comportamento dos jovens que são vítimas?
Andreia - O assunto não faz parte, diretamente, do cotidiano de uma escola. O que acontece é que, quando um adolescente está com problemas na escola, está chorando ou tendo uma crise nervosa, ele é encaminhado a alguém que possa acalmá-lo num primeiro momento, para tentar compreender o que está acontecendo para, depois, informar à família.
Por isso, muitas vezes eu era chamada. Mesmo quando era professora, quando ainda estava em sala de aula, algumas alunas chamavam por mim nesses momentos de crise. Foi aí que comecei a colher os primeiros relatos.
É complicado acolher as vítimas de abuso, mesmo numa escola, mesmo que elas escolham exatamente com quem querem conversar. Mesmo entre os profissionais da educação, acaba acontecendo de um ou outro comentário descabido de, num primeiro impulso, desconfiar que o relato é mentiroso ou de procurar alguma responsabilidade nos atos da vítima. Talvez seja por isso que os adolescentes não conseguem se abrir com qualquer um.
Sempre que alguma situação fora do normal é identificada, tendo a escola certeza ou não dos fatos, a primeira coisa a fazer é conversar com a família e orientá-la sobre os encaminhamentos. O problema é que, muitas vezes, o relato não chega até a escola logo em seguida do ocorrido. Há alunos que vão relatar o que sofreram meses depois. Alguns levam anos.
É sempre possível identificar quando algo não vai bem. Por mais que os adolescentes mudem de humor como se estivessem numa montanha-russa de sentimentos, não é normal que alguém que seja feliz e sorridente na maior parte do tempo se torne uma pessoa sombria e escondida pelos cantos de uma hora para outra. Não que isso signifique abuso, mas significa que algo não está bem. Pode ser tanta coisa: um coração partido, uma dificuldade de conversar com os pais, problemas financeiros, drogas, bullying… Mas pode ser abuso também. É importante ficar de olho.
Areia - Em "Borboleta no Coração", o tema principal é o abuso sexual contra uma criança pequena, que ainda não tem conhecimento para explicar o que aconteceu. Você optou por, em vez de ser didática, criar uma história sobre sentimentos e emoções. Inclusive, uma criança pode ter acesso a esta história e fazer uma leitura que nada tenha a ver com abuso, se esta experiência não fizer parte de sua realidade.
Podes falar um pouco sobre esta escolha?
Andreia - Eu acredito que algumas histórias me escolhem. Eu não sei de onde elas vêm. Não sei como a ideia surge. Eu sinto e escrevo. “Borboleta no coração” não foi uma escolha pensada. Não foi racional. Nem sequer me lembro se eu tinha ouvido algum desses relatos bárbaros na época, mas acho bem possível que sim.
Areia - Achas importante deixar aberto para que o adulto — seja ele pai, mãe, professora ou quem quer que esteja acompanhando a criança — converse ou não sobre abuso com ela a partir desta obra?
Andreia - Sim. Nem sempre as crianças vão estar prontas para conversar sobre o abuso sexual. Mas elas são capazes de compreender que algum adulto fez mal a uma criança através da história. Quem sabe se a criança está pronta ou não para essa conversa é quem convive com a criança.
O que eu penso é que uma criança que tenha sofrido abuso vai se sentir representada na história, que pode fazer a catarse dos seus sentimentos através do livro. Que pode sentir que não é a única, que não está sozinha no mundo — e que é possível um recomeço, depois de tudo o que aconteceu.
Também penso que, independente do livro, é necessário conversar com as crianças sobre os limites dos outros em relação ao corpo delas. Que há partes do corpo em que o toque é permitido, como os braços, as pernas, mas que há partes que são íntimas, que não é qualquer pessoa que pode tocar. As crianças precisam, também, saber em quem podem confiar, para quem devem contar quando um adulto ultrapassar os limites em relação ao seu corpo.
É importante que os pais não tenham medo ou receio de conversar com seus filhos sobre seu corpo, sobre limites e sobre sexualidade — dentro da compreensão de cada idade, é claro.
Areia - Desde o lançamento deste livro, você já recebeu relatos e feedbacks de leitores?
Andreia - Recebi e recebo ainda muitos relatos em relação ao Borboleta. São crianças e pais que podem se sentar diante do livro e compartilharem uma história. É comum as crianças dizerem que é um livro triste, porque sentem a tristeza do personagem.
Um amigo, ao ler o livro, veio todo preocupado conversar comigo. Tinha receio sobre o que falar ao filho sobre a história. “Como é que eu vou falar sobre um assunto desses?” Propus que ele lesse a história e perguntasse à criança o que ela tinha entendido. O menino leu tantas coisas que o pai não conseguia: falou sobre a importância de não conversar com estranhos, falou sobre os sonhos do menino que foram destruídos, sobre como alguém consegue levar a nossa felicidade embora… Criança sente a história. Os adultos é que se preocupam demais.
Areia - Quando fala-se sobre abuso sexual infantil e juvenil, é comum que as pessoas pensem em crianças enganadas por jogos sexuais, por inocência e ignorância no assunto; e em ataques com violência. Casos de adolescentes e jovens menores de 18 anos que envolvem-se com adultos muitas vezes não são considerados como estupro, e é comum que a menina seja apontada como culpada por ter se envolvido com o agressor.
Você começa "Em Pele de Cordeiro" destacando como o sentimento de culpa aparece na maioria dos relatos de vítimas. Como você enxerga isso? Por que acontece com a maioria das vítimas?
Pela minha experiência em conversar com mulheres vítimas de abuso e pelas minhas leituras, a culpa surge no momento em que a vítima começa a se perguntar “por que eu?”. Ou seja, o que será que eu fiz para gerar no outro a ideia de que poderia abusar de mim? Que sinais eu dei para que ele se sentisse à vontade em contrariar a minha vontade? A vítima também se pergunta se, de uma maneira ou de outra, ela poderia ter evitado o que aconteceu. E se pensa que poderia ter evitado, inevitavelmente, ela fez alguma coisa que não deveria ter feito.
Quando juntamos esses questionamentos ao julgamento da sociedade, que insiste em atribuir o estupro a fatores como tamanho das roupas ou dos decotes, gestos insinuantes, cor de batom ou de esmalte, temos a fórmula para a culpa da vítima.
Areia - Na literatura, é comum que estas relações homem mais velho x adolescente/ jovem mulher sejam romantizadas — especialmente nesta onda de romances picantes dos últimos anos. No "Em Pele de Cordeiro", você mantém o perfil sedutor do personagem e vários elementos que costumam aparecer nestes romances, mas utiliza tudo isso para uma crítica social — mais uma vez, sem tirar o prazer da leitura, sem didatismo nem maniqueísmo. Como foi a idealização deste romance? Por que tocar nesta ferida?
Andreia - Eu trouxe em “Em pele de cordeiro” vários elementos para os quais a sociedade fecha os olhos. Os personagens principais pertencem à classe média alta, contrariando a ideia de que o abuso acontece nas camadas mais pobres. A maioria dos abusadores do livro são pessoas conhecidas das vítimas – e ainda temos pessoas que morrem de medo daquele estupro que ocorre a esmo, com um completo desconhecido. Trouxe abuso inclusive de marido contra sua esposa, de namorado contra namorada. É importante trazer luz sobre isso tudo que muitas vezes não queremos enxergar.
Outro elemento que eu quis trabalhar foi a cabeça da vítima, essa loucura emaranhada que fica, mesmo depois de anos. O trauma permanece em pequenos detalhes. As vítimas podem, sim, voltar a ter uma vida normal, mas não é possível negar que alguma coisa mudou dentro delas.
As estatísticas falam que uma a cada quatro mulheres sofre, sofreu ou vai sofrer abuso sexual durante a vida. Ou seja, convivemos com, pelo menos, 25% de mulheres que passaram pelo trauma do estupro. Mas minha experiência me diz que muitas mulheres não denunciam seus estupradores, tornando esse número muito maior do que as estatísticas dizem.
Além disso, não falamos sobre estupro. Não falamos sobre as vítimas, não falamos do impacto psicológico em suas vidas, não falamos dos seus traumas. Não falamos sobre os vários tipos de estupro, sobre onde ele ocorre e quem o pratica. Pensamos no estuprador como um homem muito perigoso, escondido num beco escuro, à espreita de uma vítima aleatória. Não que esse tipo de estuprador não exista: ele existe, mas a maioria dos estupradores não seguem esse perfil. São tios, avós, primos, vizinhos, amigos, namorados, maridos… Não têm rótulo na testa nem atestado de maldade. E é justo por isso que precisamos falar sobre estupro, por mais difícil que seja.
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